segunda-feira, 19 de abril de 2010

Operadores não, construtores do Direito



18.04.05

Direito, no presente contexto, é o estatal. Ainda que possa existir independentemente de qualquer Estado, o que importa, para os assim chamados “operadores do Direito”, é o estatal. Direito, em suma, é o emanado e aplicado pelas autoridades estatais.
Concebia-se, outrora, um “mundo jurídico”, mundo platônico, constituído pelo conjunto das normas estatais, fundadas na Constituição. Era um mundo do “dever ser”, em que as normas jurídicas incidiam automaticamente. No mundo dos fatos, que se lhe contrapunha, podia ocorrer a aplicação ou não da norma, sem que isso de qualquer modo afetasse sua existência, validade e eficácia. Na soma, o que se tinha era um mundo de “faz de conta”, que suponha a pré-existência de normas jurídicas de conteúdo preciso, com uma única interpretação “exata”, correndo por conta da imperfeição humana a falta, ou a inexata, aplicação da norma, que automaticamente incidira no passado.
A concepção agora é outra. Sabe-se que esse mundo jurídico é uma ilusão, porque o Direito só existe na medida em que se realiza. Mais do que um ser, é um fazer. Faz-se dia a dia, como o pão, às vezes amassado pelo diabo.
O Direito é reconstruído cada dia pelas autoridades estatais, com a participação da comunidade jurídica, constituída pelos chamados “operadores do Direito”. Constroem o Direito não apenas as autoridades do Legislativo e do Executivo, que editam normas abstratas, mas também os órgãos judiciários, advogados, promotores de justiça, assessores, delegados de polícia, professores e doutrinadores.
Varia a extensão e a intensidade da atuação de cada um. É grande o raio de ação dos que elaboram normas abstratas; mínimo, o dos que editam normas concretas. Estes, porém, podem paralisar as normas gerais, pelo que, nos casos individuais, o que importa é a norma concreta. Pode-se estabelecer a regra de que a intensidade de atuação é inversamente proporcional ao âmbito de extensão.
A criação jurisprudencial do Direito tem como ponto de partida um erro judicial, que, mil vezes repetido, vem a formar jurisprudência (error communis facit jus). Num processo de causação circular, o erro de ontem, não raro, determina o conteúdo da lei de amanhã.
Há os que regram a vida social fazendo valor sua própria determinação, como os juízes; outros, como os advogados e os assessores, fazem-no por mediação de outrem.
Merece destaque, hoje, a função de assessor de juiz, desembargador ou ministro. A praxe reintroduziu a separação entre a atividade daqueles que exercem o poder e a daqueles que preparam e fundamentam as decisões, com a fusão, em um ato único, de um ato de vontade com outro, de conhecimento, praticados por sujeitos distintos.
Por mediação de outrem também regulam o convívio, na sociedade politicamente organizada, os professores e, mais ainda, os expressivamente chamados “doutrinadores”, que, consciente ou inconscientemente, influem sobre os rumos do Direito, ainda quando se limitam, em aparência, a descrever aquilo que “objetivamente” é o Direito.
Vê-se, hoje, com clareza que a criação do Direito não constitui monopólio do legislador.É obra da comunidade jurídica, constituída, em sua maior parte, por pessoas cuja individualidade se perde na multidão.
É hora de ver, também, que o processo não é ou, pelo menos, não é sempre, mero instrumento de realização do direito material. Ao proferir a sentença, o juiz cria norma concreta, que não se subsume necessariamente numa norma abstrata anterior. Se o processo constitui a norma de direito material, é evidente que não é instrumento de sua aplicação.
Esse Direito, que é real, e não mera abstração, tem algo de caótico. Situações idênticas recebem tratamento diferenciado, por razões freqüentemente aleatórias. Evolui, o que não significa que o de hoje seja melhor do que ontem, nem sequer melhor adaptado às circunstâncias atuais. É um misto de ordem e de desordem. Não se uniformiza a jurisprudência senão através de decisões antagônicas, de avanços e de recuos. Tentativas autoritárias, como a da súmula vinculante, de transformar todas as vozes numa só voz, estão destinadas ao fracasso. O Direito moderno, especialmente se de fundo democrático, é polifônico, mas não harmônico. Contém consonâncias e dissonâncias.
O Direito, em suma, não é máquina que exija operadores. Ele é recriado, dia a dia, por todos quantos, anonimamente ou não, participam da comunidade jurídica. São os construtores do Direito.
José Tesheiner

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